Enquanto a Santa Casa de Campo Grande amarga dívidas milionárias, suspende cirurgias eletivas e mergulha em colapso por falta de materiais básicos — situação em que pacientes literalmente correm risco de morte — a prefeita Adriane Lopes (PP) sinaliza ter prioridades muito bem definidas: garantir um generoso reajuste de até 66,7% no próprio salário e dos seus aliados mais próximos.

O projeto de reajuste, costurado nos bastidores com discrição digna de roteiro político velho e manjado, prevê aumento de R$ 21,2 mil para R$ 35,4 mil no salário da prefeita. A vice-prefeita Camilla Nascimento (PP) também será “agraciada”, com salário dobrando de R$ 15.947 para R$ 31.915. Os secretários municipais verão seus contracheques saltarem de R$ 11,6 mil para R$ 30,1 mil — uma elevação obscena de 159%. No total, o impacto estimado para os cofres públicos, até o fim do mandato, será de espantosos R$ 328,8 milhões.

MATEMÁTICA DA INSENSIBILIDADE

Enquanto a elite do poder municipal vê os números se multiplicarem, o funcionalismo de base amarga três anos consecutivos sem reajuste linear. Professores, enfermeiros, técnicos e demais servidores seguem com salários corroídos pela inflação — mas quem disse que alguém no Paço Municipal se importa?

Para piorar o enredo, no dia 31 de março, a própria Adriane assinou o documento que detalha o impacto financeiro do reajuste. Sim, no mesmo período em que negava um pedido de R$ 46,3 milhões para impedir o colapso da Santa Casa, principal hospital da cidade. O valor negado à saúde pública seria mais do que suficiente para cobrir todo o aumento previsto para este ano, estimado em R$ 67,5 milhões. Mas salvar vidas não parece render dividendos políticos — ao contrário dos holofotes que acompanham aumentos salariais turbinados e propaganda institucional.

MANDATO DO CAOS E ESCÂNDALOS

Essa tentativa de reajuste vem na esteira de outros episódios controversos da gestão Adriane. A prefeita já é alvo de ação de cassação no Tribunal Regional Eleitoral por compra de votos nas eleições de 2024 — caso em que assessores foram flagrados combinando pagamentos via PIX em troca de apoio político, segundo aponta o Ministério Público Eleitoral. As provas são consideradas robustas até mesmo pelo juiz de primeira instância, que reconheceu “farta evidência de crime eleitoral”.

Além disso, a prefeita vem sendo envolvida em denúncias sobre o uso de OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) para repassar recursos públicos sob pouca ou nenhuma transparência.

Como se não bastasse, a cidade enfrenta obras paradas por inadimplência da prefeitura com empreiteiras, em meio a licitações de compra de ar-condicionado para a educação pouco transparentes.

NA SEMANA SANTA, O SACRIFÍCIO É SÓ DO POVO

Adriane Lopes em sua posse comoe prefeita de Campo Grande (MS). Foto: Tero Queiroz Adriane Lopes em sua posse comoe prefeita de Campo Grande (MS). Foto: Tero Queiroz 

É simbólico — e, para muitos, irônico — que a votação desse projeto de reajuste salarial ocorra justamente na Semana Santa, período em que se relembra a Paixão e Morte de Cristo. Adriane, que se apresenta como missionária da Assembleia de Deus Missões, parece ter esquecido que o princípio cristão mais elementar é servir ao próximo, não ao próprio bolso.

Se há uma cruz sendo carregada em Campo Grande, ela está sobre os ombros do povo — dos pacientes que esperam meses por uma cirurgia, dos professores mal pagos, dos motoristas que desviam de buracos nas ruas e dos pequenos empresários que lidam com obras paradas e calotes do Executivo municipal.

NO COLO DO LEGISLATIVO

A peça de aumento de salários foi enviada pela prefeita à Câmara Municipal, endereçada ao presidente do Legislativo, vereador Epaminondas Neto, o Papy (PSDB). Com a ‘bomba’ no colo, Papy tentou diálogo com o Executivo para rever a medida. Entretanto, inicialmente, não houve acordo.

Porém, na noite da 2ª feira (14.abr.25), o presidente da Casa de Leis teria recebido um telefonema da própria prefeita pedindo para retirar de pauta, pelo menos por ora, a votação do projeto que aumentaria seu salário e o dos aliados. A essa altura, muitos veículos de comunicação já haviam malhado o representante da Câmara. O que parece é que Adriane enviou o projeto ao colo de Papy para causar desgaste no chefe do Legislativo campo-grandense.

DINHEIRO TEM. O QUE FALTA É VERGONHA

A própria prefeita reconheceu, por meio de documento oficial, que há previsão orçamentária para bancar os supersalários. Ou seja, dinheiro tem. A escassez é de prioridade, empatia e decência.

A narrativa da escassez de recursos, usada como desculpa para não investir em saúde pública, se desmonta com facilidade diante de planilhas assinadas pela própria prefeita, que mostram gastos milionários com reajustes para os “de cima”. Enquanto isso, a Santa Casa opera com estoques críticos de medicamentos, leitos insuficientes e profissionais exaustos.

Campo Grande assiste, em tempo real, ao retrato de uma administração que opera como se governar fosse um negócio de benefício próprio. E, se depender do silêncio dos que deveriam fiscalizar — como o Ministério Público e o Tribunal de Justiça —, o grito do povo seguirá abafado entre discursos religiosos vazios, promessas recicladas e privilégios sustentados com o suor de quem menos tem.